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É aqui pensada a "referenciação como atividade discursiva" (KOCH, 2009, p. 53), além disso o processo de construção de referentes atende a algumas percepções basilares, tais quais operar na elaboração da realidade, na negociação entre interlocutores e na constituição de trabalho sociocognitivo (CAVALCANTE, 2012). Sendo assim, a partir de subsídios teóricos da linguística de texto alusivos aos processos de referenciação, buscar-se-á identificar os elementos de maior importância na construção de sentidos do texto - sejam eles de caráter linguístico ou não linguístico - diante de algumas noções como introdução referencial, objetos de discurso de expressão anafórica ou dêitica, por exemplo, e algumas funções por elas representadas, como a organicidade temática, o convite à ativação da memória do interlocutor e a progressão referencial (KOCH, 2009; CAVALCANTE, 2012).
O texto analisado, como já dito, é um curta-metragem estruturado através de recursos de linguagem variados, no que diz respeito às semioses que o constituem, a análise parte do suporte teórico da linguística de texto que também oferece recursos à interpretação do caráter multimodal do corpus - além dos de caráter linguístico. Então, é reconhecendo a importância do caráter multimodal dos textos e seu valor no processo de construção de sentidos na completude do material, que os referentes (linguísticos, imagéticos ou visuais e sonoros) serão observados e avaliados de acordo com os papéis que podem desempenhar no processo de referenciação, na textualidade como um todo.
4 A análise do curta-metragem
A escolha do material foi definida em propósito de o curta-metragem, apesar de ter apenas cinco minutos de duração, constituir um texto rico no que diz respeito à utilização de recursos semióticos diversos, portanto, a construção de sentidos nesse texto também vai exigir do leitor habilidades de leitura para além daquelas necessárias diante do texto habitualmente dito verbal. Sobre a narrativa, a história se inicia com o pequeno Jean-Claude contando que seus pais se conheceram na prisão. É importante ressaltar que os elementos linguísticos são utilizados no início, num pequeno trecho intermediário da duração e outro rapidamente no final, isto é, a história é narrada por seus pais mímicos, cuja apresentação é essencialmente visual e sonora (como pode ser verificado no curta anexado acima).
Considera-se o curta-metragem um texto multimodal, uma vez que é possível verificar o diálogo entre modalidades distintas, ou seja, é composto por formas diferentes de linguagens: imagens, sons, gestos (KRESS e VAN LEEUWEN, 2001). Seu caráter multimodal é com certeza fator primordial na escolha enquanto objeto de estudo e análise neste trabalho. Portanto, vale ressaltar que este estudo e análise constituem uma simples tentativa de refletir sobre a construção referencial na constituição dos elementos não linguísticos do texto.
Além do aporte teórico que leva em consideração a LT - com o estudo da referenciação -, é fundamental citar os estudos da multimodalidade de Kress a Van Leeuwen e, especificamente para a análise, de trabalhos como o de Custódio Filho (2009) com a análise de um filme ("Bem me quer, mal me quer"), que considera as relações entre o texto verbal e a imagem. Para além dessas duas modalidades que podem ser identificadas no curta trabalhado, aqui será observada/ouvida mais uma: a modalidade sonora, uma vez que, por serem os protagonistas mímicos, a identificação de alguns referentes acontecerá, em alguns momentos, especificamente graças aos sons que aparecem aliados às imagens.
Faremos um resumo da narrativa para que nos atentemos a detalhes que poderiam, num primeiro momento, não ter sido notados. Seguem, respectivamente, as análises e observações juntamente aos trechos a que se referem. O curta se inicia com uma moça entrevistando Jean-Claude que se apresenta (dêixis pessoal) e questionando como seus pais se conheceram e ele responde que na prisão - acrescentando-se a isso, ele ter mencionado a tristeza do pai em não ter uma mulher (objetos introduzidos por elementos linguísticos, imagéticos e sonoros). Aqui há a introdução dos referentes do discurso, "os pais" do menino, cuja história será narrada em seguida (ver 00:00:00 - 00:00:50).
Imagem 1 – Apresentação de Jean-Claude no início da entrevista / Fonte: Sylvain Chomet
Jean-Claude não conta a história sozinho, pois essa retrospectiva é feita através da narrativa visual-sonora, após a apresentação há uma desfocalização do menino para o momento da narrativa em si. O mímico acorda, abre a janela, acaricia seu animal de estimação, dá-lhe algo para beber, passa pela porta afora e pega uma flor no jardim. Lembrando que é um mímico, o contexto e levando em consideração o cenário pouco ornamentado, a casa sem objetos - com exceção de dois quadros na parede, sugerindo felicidade e tristeza-, a construção de sentidos se dá através dos sons simultâneos às imagens, a introdução dos objetos de discurso, pode-se dizer, acontece através do conteúdo que é inferido na confluência do texto imagético e sonoro. Está claro que ele acorda, espreguiça-se, no entanto, ao pegar e acariciar o animal, por exemplo, sem o recurso/referencial sonoro, não se saberia de que referente se trata de fato. Seria possível deduzir um animal pequeno, dentre muitos que podem ser criados em ambiente domiciliar, entretanto o som nos infere que é um gato (ver 00:00:54 - 00:01:48).
Imagem 2 – O mímico sai de casa à procura de sua amada / Fonte: Sylvain Chomet
Ao sair de casa, o mímico se depara com uma guarda de trânsito, oferece-lhe a flor colhida (que é rejeitada), entra em seu automóvel (inferências visuais e sonoras) e sai a percorrer a cidade. Sua primeira parada é num café ao lado de duas mulheres, ele se senta e começa a ler, talvez, um jornal, é "convidado a se retirar" - referência construída através da visualização da linguagem corporal - pelo garçom, deixa uma gorjeta (referente sonoro ativando a memória do som de uma moeda) e vai embora.
Chega a uma grande praça (com vista para a Torre Eiffel) em que encontra vários casais que combinam, pode-se dizer, e mais uma vez, percebe-se triste e sozinho. Por um breve momento, a progressão dos elementos visuais e sonoros (indicando beijo) nos fazem crer que o mímico finalmente encontrou sua alma gêmea, mas não passava de uma atuação e sua solidão é recategorizada através de sua expressão facial de tristeza (anáfora), como a que foi introduzida no início da história (ver 00:03:10 - 00:03:28).
Imagem 3 – Representando a solidão que tomava conta do mímico / Fonte: Sylvain Chomet
Ao imitar algumas pessoas na praça, arranja confusão e vai preso. Nesse momento o personagem literalmente sai de cena e a inferência de que ele apanhou e teve problemas é introduzida apenas através do referente sonoro. Diante disso ele vai preso e lá conhece sua futura esposa - um novo elemento visual - porém, ancorado na referência linguística do início do curta quando o pequeno Jean-Claude diz "Meu pai estava triste porque não tinha uma mulher" (ver 00:04:03 - 00:04:32).
Imagem 4 – O encontro do casal transforma, claramente, a tristeza em felicidade / Fonte: Sylvain Chomet
Ao se conhecerem, a tristeza se transforma em felicidade, são expulsos da cadeia e saem a passear por Paris. O referente sonoro recategoriza o automóvel sendo utilizado, junto com o elemento visual, a forma como eles movimentam suas pernas indica que estão em movimento e o "carro funcionando". O processo de construção desses referentes visuais e sonoros ocorre de forma bem estreita, pois a seleção e a montagem desses elementos constituem operações linguísticas que tem como objetivo contar as histórias.
Chega-se à conclusão de que os elementos constitutivos da linguagem cinematográfica não têm em si significação pré-determinada: a significação depende essencialmente da relação que se estabelece com outros elementos. Esse é um princípio fundamental para a manipulação e compreensão dessa linguagem. Por isso o cinema é basicamente uma expressão de montagem. (BERNARDET, 1985, p. 19).
Durante o passeio aparece a imagem da torre Eiffel, que neste momento, entende-se a inferência de Paris enquanto "cidade do amor" e, sutilmente, retomando o próprio nome do filme "Paris, eu te amo". Neste ponto, a narrativa visual-sonora se encerra e a focalização volta-se ao pequeno Jean-Claude que encerra a narração dizendo "Terminei de contar minha história". Logo depois ele é derrubado por garotos que passam correndo e a focalização da câmera volta-se aos mímicos, seus pais, colocando os três personagens no mesmo âmbito temporal (presente da narrativa). Ainda assim, seus pais "dizem-lhe para não ficar triste" através da expressão facial, o filho assente e vai à escola - inferência construída também de acordo com os referentes visuais introduzidos: uniforme, pasta da escola, colegas que riem dele (ver 00:05:02 - 00:05:20).
Imagem 5 – Apesar da tristeza, os pais lhe orientam a deixar os problemas de lado, trocando a expressão de tristes para felizes / Fonte: Sylvain Chomet
É importante destacar a noção de um otimismo sutil (expressão triste-feliz), pois parece, além do tema amor, constituir noção fundamental no curta. Percebe-se que no início do pequeno filme, um objeto linguístico do discurso está escrito na porta da casa do mímico: "mímico estúpido" ("con de mime"). Esse referente linguístico pode ser considerado recategorizado através de elementos visuais em progressão, reativado na memória do interlocutor quando, por exemplo, ao chegar em lugares diferentes, ele, na sua condição de mímico, nunca é bem recebido (tendo sua flor recusada e sendo "convidado a se retirar" do café) tendo sido expulso, inclusive da prisão.
Interessante é que, ao final, alguns referentes que foram introduzidos apenas com o recurso sonoro "aparecem" e podem ser literalmente vistos pelo interlocutor, esses objetos são o gato e o automóvel que ancoram nos referentes introduzidos no início do curta pela modalidade sonora e/ou visual. Ou seja, considerando como se desenrolam as cenas no curta, como são selecionados os elementos que as constituem e como os elementos multimodais se integram de forma a construir sentidos (aspectos visuais, sonoros e o linguístico, em menor instância) convergem para uma construção referencial de sentidos que articulam o texto.
Imagem 6 –Resumo de algumas cenas principais no curta, (1) a surpresa do encontro do casal, (2) a felicidade como consequência do encontro, (3) o filho Jean-Claude encerrando sua narrativa/ Fonte: Sylvain Chomet
Verifica-se que os referentes do texto analisado, sejam eles de caráter imagético, sonoro ou linguístico, foram responsáveis, principalmente, para manter a temática do curta (o mímico triste e incompreendido que buscava uma mulher para amar), ou seja, conservar a organização temática; recategorizar alguns referentes que ora foram introduzidos pela modalidade visual, ora pela sonora e ativar a memória do interlocutor. Ciulla e Silva (2008 apud CAVALCANTE, 2012, p. 138-139) "defendem que a estratégia de apelar para a memória do interlocutor, que precisa preencher a imagem do texto com as próprias experiências, é uma forma de trazer o leitor para perto da situação", contribuindo para o processo de interpretação de sentidos elaborados no texto.
5 Conclusão
Neste trabalho, o empenho foi estabelecer a análise de um curta-metragem com protagonistas mímicos, ou seja, bastantes recursos imagéticos e sonoros, e em menor incidência recursos linguísticos. O desafio é necessário para repensar alguns conceitos e teorias no que diz respeito ao estudo do texto. Além disso, a tentativa de buscar entender a construção de sentidos num texto que apresenta poucos - mas não menos importantes - recursos linguísticos e, essencialmente, recursos imagéticos e sonoros que propiciam a interpretabilidade desse material é válida, no sentido de comprovar que a construção dos referentes pode acontecer via elementos não linguísticos, ou seja, através de multissemioses integradas.
Demonstra-se a importância do estudo dos elementos não linguísticos, por vezes integrados aos linguísticos, a fim de validar que o processo de construção referencial não é exclusivo da textualidade linguística grosso modo, porém constitui processo intercognitivo, social e multimodal podendo ser selecionados e estar estruturados de tal forma a corroborar com a organização temática e/ou fazer um convite à ativação da memória do interlocutor, que nessa ação continuada e complexa de contato com as linguagens diversas, conexão com seus conhecimentos individuais e de mundo, vai ser capaz de assimilar os sentidos do texto com seus mais diversos recursos.
Vale ressaltar ainda a importância da experiência da produção deste artigo em meio digital, permitindo ampliar as possibilidades de leitura e de estudo acerca da multimodalidade, o que proporcionou o enriquecimento da investigação e da leitura através da acessibilidade do curta analisado per se de suas respectivas observações.
Referências
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Nova Cultural/ Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos).
CAVALCANTE, M. M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2012.
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DIONISIO, A. P. "Gêneros textuais e multimodalidade". In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S.; (org). Gêneros Textuais: Reflexões e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 137-151.
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MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
____. "Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação". In: KARWOSKI, A. M.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S.; (org). Gêneros Textuais: Reflexões e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 16-31.
____. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
PEREIRA, A. C. C. O gesto das mãos e a referenciação: investigação de processos cognitivos na produção oral. 2010. Acesso em: 05 jul. 2015.
SCHINDEL, F. de C.; FURTADO, D. Mimo Corporal: O uso da técnica no trabalho do ator. 2013. Acesso em: 05 jul. 2015.
UMA ANÁLISE REFERENCIAL DO CURTA "TOUR EIFFEL", DE SYLVAIN CHOMET
Lorena Gomes Freitas de Castro (Mestranda/UFS / lorenna.gfc@gmail.com)
Resumo: Este trabalho busca desenvolver uma análise da construção referencial do texto no curta francês "Tour Eiffel" de Sylvain Chomet. A narrativa é construída por meio de diferentes códigos semióticos que se integram e convergem para uma interpretação não verbocêntrica, uma vez que os protagonistas são mímicos. Para essa análise do processo de construção de referentes foi preciso avaliar o discurso multimodal e como as multissemioses são importantes para a criação de efeitos de sentido. Percebe-se através desse estudo com base nas perspectivas da referenciação que os sentidos do texto se valem das multissemioses agregadas. Alguns teóricos importantes são Cavalcante (2012), Kress e Van Leeuwen (2001), Koch (2006, 2011) entre outros.
Palavras-chave: Referenciação; Multimodalidade; Construção de sentidos.
Vídeo 1 – Paris, je t'aime - Tour Eiffel (legendado) / Fonte: Sylvain Chomet
1 Introdução
A linguagem pode ser representada através de códigos semióticos distintos, possibilitando, então, a configuração de textos nas mais variadas semioses, sendo assim é válido considerar o texto como ação social multiforme, ações estas que refletem as relações humanas e as formas de enxergar o mundo. Atentar-nos para as diversas realizações textuais é averiguar como as pessoas utilizam a variedade de recursos semióticos para construir signos em contextos sociais concretos (KRESS E VAN LEEUWEN, 2001).
É preciso, então, ter noção de que o texto é construção de sentidos que varia em forma e em conteúdo, há de se levar em consideração como esses elementos se relacionam para configurar sentidos durante a interação, como afirma Cavalcante "o texto é um evento comunicativo em que estão presentes os elementos linguísticos, visuais e sonoros, os fatores cognitivos e vários aspectos" (2012, p. 20).
A escolha do texto para estudo/análise neste artigo é então justificada por se tratar de um curta-metragem (francês), cuja narrativa é iniciada pelo texto linguístico, no entanto se desenrola sobretudo através de elementos visuais e sonoros, uma vez que os protagonistas são mímicos focalizando os elementos imagéticos (sucessão de imagens).
A constituição multimodal do curta roga do sujeito habilidades de leituras diferenciadas, habilidades estas que solicitam ao leitor seus conhecimentos linguísticos, conhecimentos individuais e de mundo, para que seja possível interpretar os sentidos que ali estão sendo construídos.
Levando em consideração a habilidade de leitura, quanto maior for a capacidade do leitor de perceber as informações nos percursos multissemióticos, maior será o número de interpretações diante do texto a ele apresentado. Os sentidos do texto serão construídos nas diversas semioses integradas, no conhecimento de mundo ativado e no contexto. Como ratifica Cavalcante "o texto é um evento comunicativo em que estão presentes os elementos linguísticos, os fatores cognitivos e sociais" (2012, p. 27).
É prerrogativa deste trabalho perceber os aspectos multimodais do curta-metragem, ir além da materialidade linguística, buscando compreender sua narrativa através da construção de referentes linguísticos e extralinguísticos. Porque é necessário ampliar as abordagens sobre o texto e reconhecer que este é construção de sentidos dinâmica e flexível (MARCUSCHI, 2008, 2011) e deve, portanto, ser estudado com plenitude em suas modalidades.
Aqui, pretende-se estabelecer um estudo multimodal do curta-metragem, à luz dos estudos desenvolvidos sobre os processos da referenciação e do discurso multimodal para comprovar a importância do diálogo entre áreas linguísticas e aquelas que têm como escopo textos construídos por outras linguagens, assim será possível estabelecer novos olhares aos processos de produção e compreensão de sentidos, sobretudo quanto a textos que se configuram a partir de multimodalidades (imagens, gestos, sons, tipografia, elementos linguísticos etc).
Para a realização desde estudo, tem-se como aporte teórico-analítico alguns estudos da Linguística de Texto, sob uma perspectiva sociocognitiva e interacional da linguagem e os da multimodalidade. Alguns nomes são Cavalcante (2010, 2012), Custódio Filho (2009, 2010), Dionísio (2011), Marcuschi (2008, 2011, 2012), Kress and Van Leeuwen (2001), Pereira (2010) entre outros.
A seguir, será feito um breve percurso histórico acerca do cinema, a contextualização do curta-metragem escolhido, um pouco sobre a mímica enquanto linguagem corporal e, por fim, a análise do texto multimodal e considerações finais.
2 Uma retrospectiva cinematográfica
2.1 O cinema
Junto com outras invenções, o cinema constitui um dos grandes trunfos do universo cultural e pode ser considerado como uma das formas de linguagem mais ricas a que se tem acesso na contemporaneidade. Ao contrário do que muitos podem pensar e como afirma Jean-Claude Bernardet (1985), cinema não é só a história projetada na tela, mas todos os elementos que se seguem desde produção, distribuição e exibição do filme ao público. Além disso, nem sempre os filmes contaram com tantos recursos a fim de expressarem os desejos de seus produtores como nos dias atuais.
O cinema evoluiu em diversos aspectos, passando do cinema em preto e branco ao colorido, do mudo ao sonoro e assim por diante. A novidade da ilusão, a possibilidade de provocar impressões do real, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema (BERNARDET, 1985). O início da "arte do real" se deu com o então chamado primeiro filme da humanidade, um curta de um trem chegando à estação, data de vinte e oito de dezembro de 1895 e foi filmado em Paris pelos Irmãos Lumiére, os inventores do cinematógrafo (ver Vídeo 2).
Vídeo 2 – Arrival of a Train at La Ciotat (The Lumière Brothers, 1895) / Fonte: Cinema History
Crescendo em diversos lugares, a perspectiva cinematográfica se destacou de formas diferentes. História, cultura, economia e inclinações tanto ao realismo quanto ao "faz-de-conta" são fatores que tiveram grande influência na produção das obras. Ou seja, enquanto alguns países investiam numa produção cinematográfica alinhada com a expressão da realidade (como a situação econômica e/ou política), outros investiam na criação de outras realidades, atingindo inclusive uma perspectiva intimista (Cinema Argentino, nos anos 1960 por exemplo).
Os primeiros filmes foram em curta-metragem, em meados dos anos 10, essa modalidade foi aos poucos cedendo espaço aos filmes de longa-metragem que foram se aprimorando - com a implantação do som, por exemplo. Nos últimos anos, como bem explana Bernardet (1985), é possível verificar que os curtas assumem uma postura quase que revolucionária, uma vez que se propõem a apresentar temáticas sociais que precisam ser debatidas, tais quais questões políticas, movimentos operários e a mobilização feminista.
2.2 Tour Eiffel
Tour Eiffel, de Sylvain Chomet, é um curta dentre vinte e um que compõem o filme Paris, je t'aime. Este é um filme colaborativo, isto é, uma coletânea de curtas de diferentes diretores que dentre perspectivas diversas, mostra a cidade de Paris e apresentam o amor sob percepções distintas, cada curta-metragem tem duração de 5 minutos. A coletânea contou em sua produção com vinte e dois diretores e atores reconhecidos, foi coordenado por Emmanuel Benbihy e data do ano de 2006.
O pequeno filme é uma homenagem a Marcel Marceau, mímico mais popular do período pós-guerra, de origem judaica francesa viu-se obrigado a fugir e mudar de nome por causa das perseguições. Não obstante, após a segunda grande guerra se matriculou numa escola de arte dramática e tendo Chaplin como ídolo, deu prosseguimento aos estudos da linguagem corporal, teve sua carreira de mímico alavancada e viajou pelo mundo espalhando a, então, chamada "arte do silêncio".
2.3 A mímica
A mímica é a arte de expressar o pensamento através de gestos e expressões corporais, a pantomima é um teatro gestual que faz uso da mímica e pouco ou nenhum uso das palavras para narrar histórias. Assim como a dramaturgia, tem suas origens na Grécia antiga, mas também se sabe de indícios em outros povos, teve destaque também no império romano de Augusto, eis a pantomima clássica. Houve um período de proibição das manifestações artísticas, durante a Idade Média com a Inquisição, e logo depois surge a pantomima romântica, tendo como grande nome Jean-Gaspard Debureau que trouxe de volta a arte, sendo seguido no cinema mudo, por exemplo, por Charles Chaplin e Buster Keaton.
A partir do século XX - período de grande renovação conceitual e estética - surge um novo estilo de pantomima com um repertório considerado neoclássico e tendo como principal representante o já mencionado pantomimo Marcel Marceau. Nos dias de hoje, os artistas contam com recursos enriquecedores para enfatizar suas performances como cenário, maquiagem, figurino e objetos, influência bastante demarcada com a atuação de Charles Chaplin.
A linguagem corporal constitui outra modalidade de comunicação, diferentemente do código linguístico. Sendo assim a utilização de todas as partes do corpo e a ênfase da expressão facial serão importantes na configuração da história, para atrair a atenção do público e uma construção de sentidos fundamentada na imagem e, talvez, com suporte sonoro, que é o caso do curta-metragem utilizado neste trabalho.
Como traz Pereira (2010) "a linguagem é fenômeno corpóreo", logo, integrando outras formas de comunicação e constituindo outras maneiras de querer-dizer, têm por base o processo cognitivo, ativando a memória do leitor e solicitando habilidades específicas de letramento em virtude da(s) modalidade(s) então apresentadas. É preciso buscar compreender como elementos distintos se integram para entendê-los, como afirma Dionísio, "Na atualidade uma pessoa letrada deve ser alguém capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de linguagem, bem como ser capaz de produzir mensagens incorporando múltiplas formas de linguagem." (DIONÍSIO, 2011, p. 138).
Os gestos das mãos são responsáveis por designar pensamentos e formas, relações com o espaço, indicam direções e mostram o formato das coisas e estão estreitamente ligados à fala (PEREIRA, 2010). Não obstante, no caso da mímica a construção dos referentes acontece principalmente através dos movimentos corporais e expressões faciais, isto é, a linguagem corporal "fala por si só", é a linguagem essencial nessa modalidade e não apenas serve de suporte para uma comunicação pautada em elementos linguísticos.
Etienne Decroux, durante o período neoclássico do mimo, foi responsável por estudar o mimo corporal, sua técnica e o trabalho de atuação observando como
[...] os alunos realizavam ações corporais de experimentação das qualidades de movimento, subtraindo o uso da fala e cobrindo o rosto com um véu denominado máscara neutra. Esses exercícios levaram Decroux a refletir sobre a variação das formas de se movimentar, dando enfoque às possibilidades articulares do corpo, desde seu isolamento de movimento articular até a pluralidades de combinação articular. (SCHINDEL, FURTADO, 2013, p. 2).
Isso significa que a arte de narrar através dos movimentos corporais não requer o discurso linguístico, é completa o suficiente para estabelecer conexões com o seu leitor e apresentar seu texto, pois a interação vai gerar a produção de sentidos, em função dos conhecimentos de mundo (individuais e coletivos), do contexto e das inferências ali produzidas (CAVALCANTE, 2012). Assim como, por exemplo, na Linguística de Texto (LT) é possível que estudemos o processo de construção referencial, as expressões referenciais utilizadas e, obviamente, suas funções no texto, o mimo tem seus princípios básicos que vão ser responsáveis pela função dos movimentos, tais quais ponto fixo, origem do movimento, causalidade, equilíbrio de luxo, dinamoritmo, resistência, contrapeso, raccourci, desenhos tridimensionais (LEABHART, 2007 e BURNIER 2009 apud SCHINDEL, FURTADO, 2013).
É importante ampliar nossos olhares diante de uma perspectiva multidisciplinar na tentativa de compreender como são construídos os sentidos noutras modalidades de linguagem, suas técnicas e como funcionam, para então interpretar essas configurações numa dimensão ampliada quando a elas estiverem, inclusive, integrado o elemento linguístico, assim a coerência, princípio de interpretabilidade e compreensão (KOCH, 2011) pode ser considerada na coexistência dos elementos linguísticos e não linguísticos.
Neste trabalho, não se busca desprezar o componente linguístico em detrimento de outras formas de linguagem, mas tentar entender na combinação textual, por inteiro, quais elementos corroboram essencialmente para a construção dos referentes no texto, afinal "nem o referente, nem sua âncora precisam ser necessariamente expressos por mecanismos linguísticos. A referenciação é um processo intercognitivo, que se produz durante a interação e a partir dela." (CAVALCANTE, 2010).
3 Metodologia
O presente trabalho se pauta numa perspectiva ampla do estudo do texto, já que o objetivo é realizar análises do curta-metragem utilizando como suporte os processos intercognitivos da construção de referentes no texto levando em consideração os diversos códigos semióticos. É válido evidenciar que a textualidade aqui considerada não está delimitada aos elementos linguísticos, porém se amplia para os elementos textuais de natureza não linguística e sua interação, isto é, a construção de sentidos através das multissemioses integradas.