O "CORPO IDEAL" NAS CAPAS DA REVISTA BOA FORMA: UMA ANÁLISE DISCURSIVA

    Grace Cristina Milet Castro da Paixão (Mestranda / UFS / gracemilet@gmail.com)

    Resumo: No presente artigo, objetivamos investigar o discurso das capas da revista Boa Forma diante da luta íntima contra o excesso de peso, na busca de um corpo magro tido como ideal, e quais sentidos são construídos no discurso apresentado sobre a obesidade através do não dito. Pretendemos mostrar que o discurso dessas capas procura delinear o sujeito perante o assujeitamento desse leitor às suas ideologias inconscientes. Para tal, selecionamos como corpos três capas da revista Boa Forma. Nosso artigo está embasado no campo teórico metodológico da Análise do Discurso francesa, onde o discurso é entendido como estrutura e acontecimento, tendo uma dimensão linguística e sócio-histórica.

    Palavras-Chave: Capas de Revista; Corpo; Análise do Discurso.
  • 1 Introdução

    A língua é uma faculdade contribuinte para a ideia de identidade, é um veículo que possibilita as interações humanas, reflete objetivos comunicacionais de identidade cultural e de pensamentos ideológicos. De acordo com Bakhtin (2003), toda atividade humana está sempre relacionada com o uso da língua, por mais diversificada que seja. Portanto, "não é de se surpreender que o caráter e o modo dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua" (BAKHTIN, 2003, p. 261). Nesse contexto, a identidade nacional se reveste de maneira sucessivamente diferenciada, trazendo o fato de que a língua não serve apenas como mero instrumento de comunicação, daí temos a possibilidade de investigar as várias identidades apresentadas em uma única língua. Dessa forma, através da análise do discurso, podemos estudar a linguagem de diversas maneiras. E sobre isso, o professor Damião Boucher comenta:

    Vídeo 1 – Análise de Discurso: Linguagem em questão / Fonte: Damião F Boucher

    Nesse campo teórico, com um único enunciado, disseminado pela mídia na sociedade temos a possibilidade de percorrer a história e conhecer outros dizeres através das relações discursivas, produzindo saberes capazes de fazer refletir e inquietar, já que as palavras são imbuídas de aspectos ideológicos materializados pela linguagem. Assim buscaremos compreender a formação e a transformação das práticas discursivas relacionadas ao corpo. Tais práticas podem ser verbais ou não verbais. Porém, não é exclusivamente pela imagem do texto, objeto material, que há uma produção de sentido. Muitos outros sentidos são produzidos a partir do que está implícito:

    Uma expressão não tem um sentido que lhe seja 'próprio', vinculado à sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. (PÊCHEUX, 1997, p. 161).

    Atualmente há um emprego político dos corpos nos anúncios publicitários como: "emagreça 5 quilos em duas semanas" ou "enxugue 3 quilos em quinze dias". Nesse contexto, o indivíduo é controlado sem perceber e tenta obter transformações em seu corpo fazendo dietas, consumindo produtos light e/ou diet ou fazendo plásticas para entrar na ordem do discurso midiático: "tem que ser magro para ser aceito socialmente". Sobre esse discurso de controle, segundo Foucault (2008, pg. 147): "encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: 'fique nu…mas seja magro, bonito e bronzeado!'". Nessa perspectiva, existe um dialogismo com o que Orlandi (2002) diz sobre o interdiscurso que é: "o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra". Portanto, todos os sentidos nessa ordem discursiva que já foram ditos por alguém, em algum momento, mesmo que muito distantes, têm efeito sobre o que se diz atualmente nos anúncios publicitários.

    Analisar o discurso sobre o corpo com o arcabouço da análise do discurso é lançar nosso olhar sobre maiores horizontes, reconhecendo que o discurso é atravessado por suas condições sócio-históricas de produção gerando historicidade constitutiva. Com a análise das capas da revista Boa Forma tentaremos observar de que maneira colaboram no processo de popularização da ciência em relação ao corpo, concebendo-o como máquina, cujo verdadeiro discurso está traduzido muitas vezes pela divulgação midiática das variadas maneiras de como se cuidar do corpo, e quais sentidos são dispostos sobre a obesidade por meio do não-dito, delineando o sujeito ante o assujeitamento desse leitor às suas ideologias irreflexivas.

     

    2 Fundamentação teórica

    Pensando na função de atração do leitor para que compre uma revista a partir da capa, esta deve apresentar a realidade estetizada para comunicar de forma séria, mas também espetacular com imagens e cores vivas, negando os problemas do cotidiano ao divulgar o fato para o qual todos devem se submeter deixando de lado outros acontecimentos. Nesse sentido, segundo Boris Kossoy (2002), a imagem fotográfica é um eficaz instrumento na propagação de ideologias e da consequente formação e influência da opinião pública. Assim, " [...] elas são plenas de ambiguidade, portadoras de significados não explícitos e de omissões pensadas, calculadas" (KOSSOY 2002, p. 22). Para melhor visibilidade, o professor Boris Kossoy faz alguns comentários:

    Vídeo 2 – Entrevista Boris Kossoy / Fonte: Daniel Cosoy

    Tal fundamentação teórica dialoga com os pressupostos da Análise do Discurso francesa, cujo processo de construção de ideias permite manipulação ideológica. De acordo com essa linha de estudos, todo discurso pode ser formulado por uma sucessão de palavras, seja verbal, imagético ou que ouvimos. Porém, não é exclusivamente pela imagem do texto, objeto material, que há uma produção de sentido. Muitos outros sentidos são produzidos a partir do que está implícito. Logo, com tais meditações, observamos que perante a materialidade linguística, imagética ou textual, revelam-se processos ideológicos, políticos e históricos que lhes são constitutivos. E também, todo texto sempre se refere a outro, ocorrido em outro local que surge na superfície textual pelo fenômeno da memória discursiva, completando os não-ditos do texto, trazendo outros dizeres, outros fatos cruzando o explícito e influenciando de maneira contundente os seus sentidos.

    Assim, na Análise do Discurso, a ideologia faz parte do funcionamento da linguagem e é materializada na própria linguagem, por isso, "a conjunção língua/história também só pode se dar pelo funcionamento da ideologia" (ORLANDI, 2002, p. 96). Nesse domínio discursivo tem-se a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia constitutiva.

    [A interpelação] faz parte do mecanismo elementar da ideologia, que é a interpelação do indivíduo em sujeito, o apagamento dessa opacidade que é a inscrição da língua na história para que ela signifique: o sujeito tem de inserir o seu dizer no repetível (interdiscurso, memória discursiva) para que seja interpretável. (ORLANDI, 2012, p. 48).

    Encontramos no corpo, portanto, marcas do poder-saber, pois para um corpo ser útil é necessário dotar sobre ele um sistema de dominação impondo disciplinas a partir de saberes eficazes, assim, o corpo é visto como acontecimento, pois traz em si o novo, a formação de um novo sentido, e o novo sentido de acordo com Orlandi (2007) não está no dizível, na materialidade linguística, mas no silêncio, no acontecimento a sua volta, por isso o enunciado possui seu caráter singular, mesmo que retomado, atualizado. E sobre o silêncio Orlandi (2007, pg. 29) diz que, "Para entender a linguagem é preciso entender o silêncio para além de sua dimensão política". … "o silêncio é fundante. Quer dizer, o silêncio é a matéria significante por excelência… O real significado é o silêncio". A autora ainda afirma: "O silêncio não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de forma fugaz. Ele escorre por entre a trama das falas" (ORLANDI, 2007, p. 32).

  • Com tais orientações metodológicas buscaremos, em algumas capas da revista Boa Forma, produzir saberes capazes de refletir e pondo em dúvida ao que será lido, examinaremos quais efeitos de sentido as capas provocam no discurso apresentado sobre o corpo ideal, socialmente aceito.

     

    3 Análises das capas

    Os dizeres espetaculosos da mídia fazem com que a ordem dos discursos de mercadoria e corpo se encaixem cada vez mais, convertendo-o em bem de consumo. Assim, ter o "corpo perfeito", a "boa forma", significa alcançar a vitória de ter o controle sobre o próprio corpo, trazendo à baila, através do não dito, o estigma sobre o gordo, como um corpo indesejável numa sociedade que propagandeia todas as formas possíveis de se conseguir o corpo "bem delineado". Dentro de uma suposta transparência do objeto linguístico e de uma legitimação pautada nas imagens das capas, o discurso encontrado nas chamadas e nas próprias imagens, enfatiza a necessidade de o sujeito "entrar em forma" e ser saudável através da perda de "quilos em excesso".

    Nesta capa, encontramos uma atriz bastante conhecida na mídia e bem-sucedida socialmente. A Imagem 1 traz a atriz de biquíni, mostrando seu corpo magro e bronzeado, sorridente, de braços abertos e não cruzados, mostrando sua suposta felicidade e satisfação por estar dentro dos padrões sociais da beleza e do sucesso, construindo o sentido, através do silenciamento, de que só se é feliz se for magro. A chamada que mais se destaca é a maior e mais colorida: "desafio de verão, menos 10 kg e o corpo novo até dezembro". Traz um aspecto muito perverso que é a discriminação de quem não consegue ter tal "corpo ideal". Dá a receita, de uma maneira rápida, da busca da felicidade e do bem-estar, estampa "o corpo novo" como o "melhor" e o mais "aceitável". Em outra chamada (ver Imagem 1), também em destaque, diz o nome da atriz, Flávia Alessandra, conhecida com muita credibilidade, o que dá legitimidade ao discurso, com sua idade 34 anos, dizendo que está 5kg mais magra antes de ter o bebê. Nesse ambiente, através da memória discursiva, formula o sentido de que quem gera uma criança fica muito gorda e consequentemente infeliz. Portanto, através do silêncio e da opacidade do discurso, encontramos formas de sentidos outros que não se encontram no objeto linguístico.

    Imagem 1 – Boa Forma (Flávia Alessandra) / Fonte: BoaForma

    Observamos um processo de subjetivação que enfatiza cuidados corporais como formadores de identidade, demonstrando assim o assujeitamento do indivíduo que é interpelado pela ideologia vigente, efetivando sentidos de que se pode moldar o corpo da forma que quiser e que, quem não consegue, não se cuida ou não é responsável, fazendo com que, características como obesidade sejam tratadas como anormalidades.

    A Imagem 2 exibe a imagem de um corpo dito "escultural", magro, de uma atriz também bastante conhecida. Em uma posição e fisionomia sensuais, com os lábios entreabertos, braços presos acima da cabeça, alimentando fetiches sexuais, traduzindo virilidade e prazer através da demonstração de seu corpo "perfeito". Assim, a exposição do corpo magro pelas capas de revista também produz sentidos libidinosos, pois através da satisfação com sua estética se obtém um gozo desejável a qualquer sujeito. Suas chamadas trazem novamente os sentidos de que uma mulher, depois de ter dois filhos, como a personalidade da capa, Carolina Dieckmann, pode, (apesar de ter ficado gorda e fora dos "padrões aceitáveis") conseguir perder os quilos indesejáveis. E ainda detona: "que corpo! Aprenda com ela". Trazendo assim, credibilidade e direcionamento na construção de sentidos recuperados no silêncio. Aqui, podemos constatar o silêncio como constitutivo, pois segundo Orlandi (2003, pg. 71): "[...] é nessa perspectiva que consideramos a linguagem como categorização do silêncio, isto é, ela é a gregaridade, a possibilidade de segmentação, ou melhor, o recorte da significação em unidades discretas".

    Na chamada principal, com letras maiores e de cores diferentes, chama atenção sobre uma fórmula pré-concebida de "secar 4 kg e desinchar com a dieta do suco verde" e, sobretudo, os resultados cientificamente comprovados sobre "as novas armas contra a celulite, flacidez e gordura localizada", fazendo circular um discurso médico-científico legitimando o discurso midiático, traduzindo, portanto, a voz dos especialistas. Dessa forma, a legitimidade do discurso está alicerçada em dois fatos, a força da imagem de quem fala, que não é qualquer um, mas sim uma atriz socialmente aceita e a credibilidade do discurso científico, tido como verdadeiro e competente, popularizando a ciência, levando o indivíduo a buscar nele a verdade para seus próprios sentidos formando assim um sujeito assujeitado, fazendo com que esse discurso se torne unânime e representativo das formas de agir e de pensar da coletividade, assumindo o aspecto no qual mora o poder histórico-social e ideológico dessa formação discursiva.

    Imagem 2 – Boa Forma (Carolina Dieckmann) / Fonte: BoaForma

     

    Imagem 3 – Boa Forma (Claudia Raia) / Fonte: BoaForma

    Na Imagem 3, a modelo também é uma atriz famosa que já teve três filhos trazendo uma imagem de credibilidade determinada socialmente. Novamente com o corpo magro à mostra, fisionomia sorridente, demonstra felicidade e satisfação em representar tal estereótipo. Esta capa traz para o leitor uma esperança para os gordos que não conseguem "resultados com a musculação" com a chamada: "por que eu malho e não perco peso? Nós temos a solução definitiva". Uma receita para solucionar os males estéticos. Nesse discurso, o corpo é pensado como um suporte do indivíduo a ser trabalhado, no qual a identidade se dissocia entre textos e imagens virtuais. Assim, ao pensar em memória como deslocamento, (PÊCHEUX, 1999, p. 53) afirma que "sob o mesmo da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva" de forma que o já significado possa brotar o novo, o acontecimento. Portanto, o seu funcionamento acontece pela interseção da sistematicidade da língua, a historicidade e a interdiscursividade. Aqui encontramos essa interdiscursividade na memória discursiva de que só se é bonito, feliz e aceito socialmente se for magro, mesmo depois de ter ficado "gorda" e "feia" depois de várias gravidezes.

    Vídeo 3 – Making Of - Ana Hickmann / Fonte: Boaforma

    Nesse making of da apresentadora Ana Hickmann (ver Vídeo 3) para a próxima capa da Boa Forma, de Junho 2015, encontramos novamente, através da opacidade, fazendo uma transposição da dimensão do real para as imagens, uma estética sedutora que dá lugar a uma manipulação ideológica. O vídeo traz uma modelo e apresentadora muito conhecida com seu filho que teve a pouco tempo brincando a sua volta. Traz, pela memória discursiva, o estigma de que quem engravida fica "gorda", mas pode voltar a ter um "corpão" como esse da "famosa". Partindo da pressuposição de que todas as crenças estão fortemente relacionadas à cultura da sociedade a qual estamos inseridos, podemos refutar que o que consideramos desejável e bonito, por exemplo, não está afastado das representações sociais sobre a beleza. E essa ideia de que temos que ser magros para sermos bonitos é uma das visões mais poderosas que estamos encontrando ao longo dos últimos anos.

     

    4 Considerações finais

    Ser bonito é estar de acordo com padrões científicos de normalidade, logo, ser normal significa não ser gordo, ter músculos e manter a juventude, em vista disso, as revistas possibilitam essa constituição de corpos modeladores e de objetos cobiçados, formando o imaginário do descartável, no qual, aquilo que não satisfaz pode ser desenhado de acordo com padrões pré-estabelecidos. As imagens que encontramos nas capas de revistas aqui analisadas permitem a construção de um imaginário sobre a beleza, tendo como consequência um corpo magro, já que é colocado como parte de uma nova ordem estética em que todos devem ser introduzidos. Adequando-se a produção de sentido de que se obtém a felicidade através de hábitos que são vistos como os melhores e mais difíceis de seguir em nome do estímulo do combate ao mal do século, que é a obesidade.

    Assim, o indivíduo é assujeitado e de maneira coercitiva é obrigado a se enquadrar em processos de emagrecimento para adquirir o corpo ideal e para sentir-se bem a partir de princípios impostos como verdade pela exposição midiática de corpos belos, criando efeitos de sentidos, produzindo verdades cristalizadas.

    Referências

    ALENCAR, J. De. Diva. São Paulo: Martin Claret, 2003.

    BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

    CAPAS DE REVISTA BOA FORMA. Acervo digital. Acesso em: 30, junho, 2015.

    FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 25 ed. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

    ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos.Campinas, SP: Pontes, 4ed, 2002.

    ———————-. As Formas do Silêncio: No Movimento dos sentidos. 6ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

    ———————–. Interpretação, autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 6ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

    PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al). 3ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

    PÊCHEUX, M. "O papel da memória". In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. Tradução José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.